arquivar o futuro.


                                                                               Imagem do Atlas de Gerald Richter.


O 3º dia do simpósio começou com um percurso do professor Raul Antelo, um caminho de iminências, uma espécie de bricolagem etimológica que a todo momento tangênciava o próprio conceito-chave desta Bienal, porém, sem jamais determina-lo.
Antelo começou sua fala com uma citação de Stéphane Mallarmé do texto “A Ação Restrita”, uma seção da coletânea Divagações.
Ele Introduziu sua palestra com esse texto, no qual  Mallarmé redimensiona a função mundana do poeta, que não é um mero articulador alquímico da palavra, mas restaurador da criação de ferramentas formais, e assim, de possibilidades de partir do caminho mais difícil para conseguir tocar a palavra precisa. A palavra precisa, segundo Antelo, é aquela que não reitera o que busca representar, mas a que invoca o fenômeno em sua efemeridade. Ali, lendo aquele trecho de Mallarmé, o filósofo dava as primeiras dicas das dificuldades de seu discurso.
Durante toda palestra, Antelo foi um pouco mais longe do que qualquer busca da palavra precisa. Primeiro, procurou todo tempo, e de forma extensiva, desconstruir o conceito de iminência – através da apresentação de diferentes étimos e usos perdidos da palavra iminência – de modo que não poderíamos resumir toda sua potência. E houveram interessantes momentos de descoberta da raiz “imin”, como em exemplos ligados a dialetos indígenas.
O jogo etimológico com a palavra iminência foi longo, a busca quase esquizofrênica por todas as possíveis leituras e origens da palavra tornou-se uma demonstração de virtuosidade demasiadamente extensa. Algo como um mantra irregular, mas cujo efeito, de tão repetido, não consegui estabelecer, ao final, um significado regular.
A fala enciclopédica do professor em muitos momentos foi estafante, surgindo a dúvida se era realmente possível acompanha-lo em toda sua complexidade. Outro fator de estranhamento, não tocado em momento algum, foi o tema sugerido pelo simpósio “Arquivar o Futuro”. Os labirintos conceituais que passaram desde Georges Bataille, Giorgio Agamben, Michel Foucault, Didi-Huberman, até Aby Warburg... pareciam  ao menos delimitar uma espécie de família filosófica comum. Este fato nos dava a impressão de coerência, ao mesmo tempo que não auxiliava em sua plena compreensão.
Em alguns momentos o discurso perecia se desanuviar como, por exemplo, quando Antelo citou o texto de Michel Foucault “O que é Iluminismo?”. Nesse texto, no qual o filosofo francês analisa a definição de Aufklärung de Emmanuel Kant, encontramos: “A questão que parece surgir pela primeira vez neste texto de Kant, é a questão do presente, a questão da atualidade: o que é que acontece hoje? O que acontece agora? E o que é esse “agora” no interior do qual estamos, uns e outros, e que  define o momento onde escrevo? (...) O que é que, no presente, faz sentido para uma reflexão filosófica?”
O filosofo deve buscar constantemente encontrar a si mesmo no interior da história onde é elemento e ator. Seria esse mergulho incessante em busca da sua palavra iminente, imediata à própria essência de todo presente, ou de presentes vivenciáveis. Uma busca pela sua própria atualidade.
Outro filósofo, diversas vezes citado, foi Giorgio Agamben. Agamben busca pensar o que é o contemporâneo, porém desta vez citando Nietzche,  para quem a contemporaneidade seria uma relação de distancia e aproximação com o próprio tempo. Algo que buscamos, mas que só é apreendido com a sua distância. Segundo Agamben, esta “é uma relação singular com o próprio tempo, que adere a este ao mesmo tempo que dele toma distancias”.
Esse jogo de aproximação a partir de distâncias, de construções subjetivas que admitem sua própria efemeridade permeia todo discurso de Raul Antelo. Talvez a obscuridade de sua fala seja coerente. Como em outra citação de Agamben: “contemporâneo é aquele que mantém fixo o olhar no seu tempo, para nele perceber não as luzes, mas o escuro”.  Quando Antelo tenta determinar o tempo de onde fala e sobre o qual fala, utiliza conceitos como “cronologia anárquica”, “anacronia poética”,“segmentação homogênea” e “heterologia dinâmica”. Essas invenções são freqüentes... para o professor a irreparabilidade do passado torna-se iminência absoluta. Lembra-nos novamente de Agamben, quando o filósofo escreve sobre a perda da potência de experimentação do mundo enquanto fenômeno, nosso desejo de controlar o que esta em potência, em iminência. Algo que pode tornar a arte viciosa, nas suas palavras: quando a iminência é mero ritual, a arte resta apenas entre o museu e o mercado.
Voltando à Mallarmé, para quem o poeta é aquele que escolhe o caminho mais difícil, que quando arranca a palavra de sua função de reportagem do mundo, corre o risco de ter sua “ação restrita”, mas que não se confunde com a simples desistência do político. Como colocado pelo tradutor de “Ação Restrita”, Fernando Scheibe.
Seguimos então passagens mais obscuras, como quando Antelo discorre sobre Georges Bataille e a Teratologia[1]. Foram os momentos de maior hermetismo, mas não de menor beleza. O problema era a temporalidade da própria palestra que tornava quase impossível a apreensão do que era exposto.
Quando Antelo citava, por exemplo, a revista Documents dirigida por Bataille, sentimos a falta de imagens. Em uma longa digressão sobre a diferença da iminência da boca humana em relação a dos demais animais, Antelo criticou que a América foi representada apenas através de imagens da revista Documents na exposição Atlas - Como Carregar o Mundo às Costas? (curada por Georges Didi-Huberman, no Museu Reina Sofia em 2011). Tudo muito rápido, experiências demais.
A palestra de Antelo se assemelhava com o Atlas de Aby Warburg, porém de forma completamente contraditória: sem imagens. Um percurso em fragmentos eruditos que se atropelavam, mesmo que a impressão geral fosse interessante, ao final foi difícil a formulação de qualquer pergunta plausível prelo público. Os caminhos pareciam demasiadamente  difíceis e herméticos

A segunda fala foi da pesquisadora americana Adele Nelson. Sua fala foi centrada na construção ideológica que esteve por trás da II Bienal de São Paulo. Para a pesquisadora, a II Bienal não foi apenas um híbrido entre a Bienal de Veneza e o Museu de Arte Moderna (MoMA) de Nova Iorque. Em seu ponto de vista, o Brasil desejava se auto-determinar enquanto representante maior da América Latina, e esse passo poderia ser descrito através da análise das ambiguidades da II Bienal de São Paulo.
Poderíamos resumir a palestra como uma aula sobre a II Bienal de São Paulo dada por uma norte-americana, o que muitas vezes causou certa estranheza. Confusa também a relação com o tema do simpósio “Arquivar o Futuro”, não me pareceu claro em nenhum instante se o que realmente propunha era uma espécie de exposição de expectativas sobre o Brasil em relação ao seu futuro, o seria algo redundante; ou  se Nelson buscava a rearticulação de uma genealogia de relações entre o Brasil e a arte moderna americana.
Há, por exemplo, em uma análise detalhada do papel de Mario Pedrosa como curador, na época diretor artístico da Bienal, Nelson aponta para a  forma como este forjou um projeto mais ambicioso, que forneceria as prerrogativas para a produção artística brasileira posterior: com especial atenção a produções construtivistas e uma mudança de eixo histórico voltado para à América Latina. Não ficou clara a influência do MoMA e de artistas norte-americanos, como exemplificado pela grande atenção dada ao artista Alexander Calder (seria porque Calder parece muito mais determinante que Jackson Pollock pra a arte no Brasil?) e a dedicação de um prédio inteiro (o Prédio dos Estados) para a produção americana. Mesmo contando com estranhas contradições (como uma sala especial para Eliseu Visconti) a exposição, mesmo para a sua época, corria o risco de ser considerada anacrônica, ou ainda, de forçar uma trajetória artística brasileira específica.
A professora analisa as diferenças entre a disposição das obras de Pablo Picasso e Paul Klee, ambas no Prédio das Nações, que seria o prédio destinado às representações européias. Pedrosa não mediu esforços para trazer o artista alemão, e ela chega a sugerir que o critico brasileiro tenha usado argumentos de reparação pelo fechamento da Bauhaus para forçar o governo alemão a financiar a participação do artista. Há ainda, segundo Nelson, toda uma preocupação ideológica com a exposição de Picasso, que mesmo com o sucesso de Guernica, representaria algo ultrapassado ao mesmo passo que mais estruturado historicamente.
Se na primeira Bienal estava clara a divisão entre a produção abstrata e figurativa, que colocava o Brasil em sintonia com a produção européia (mesmo que de forma ainda um tanto provinciana), o evento foi uma réplica modesta da Bienal de Veneza. Foi a primeira exposição de arte moderna de grande porte realizada fora dos centros culturais europeus e norte-americanos, mas ainda carente de um sentido ou projeto cultural e ideológico mais definidos. Antes de tudo, como escreveu Mario Pedrosa, a I Bienal de São Paulo veio ampliar os horizontes das artes brasileiras. Criada literalmente nos moldes da Bienal de Veneza, seu primeiro resultado foi o de romper o círculo fechado em que se desenrolavam as atividades artísticas do Brasil, tirando-as de um isolacionismo provinciano (...) ao facilitar  à artistas e ao público brasileiro o contato direto com o que se fazia de mais 'novo' e mais audacioso no mundo'."
Já na introdução do catalogo da II Bienal de São Paulo, escrito por Sérgio Milliet: “ (...) esta exposição se organizaria a fim de colocar a arte moderna brasileira em vivo contato com a arte do resto do mundo, ao mesmo tempo que para São Paulo se buscaria conquistar a posição de centro mundial”. Para Adele Nelson, essa conquista de uma posição central no cenário mundial seria o mais importante. Diversas vezes aponta a megalomania do projeto de Oscar Niemeyer para o Ibirapuera, que talvez para uma estrangeira soem realmente alucinatórias certas projeções do arquiteto. Por exemplo, Adele aponta para os nomes originais dos dois principais prédios do projeto de Niemeyer: Prédio das Nações e Prédio dos Estados. Segundo a professora, esses nomes seriam abandonados com uma paulatina conscientização da subseqüente função brasileira no palco da política e da economia mundial.
Adele retoma sua apresentação com comparações entre imagens. A primeira comparação, entre duas fotografias de São Paulo, precisamente do entorno de onde seria construído o MASP (Lembrando que o atual MASP de Lina Bo Bardi só seria inaugurado em 1968). Uma fotografia feita no final da década de trinta (onde temos um retrato bucólico da cidade), e uma outra fotografia que nos mostra mudanças de meados da década de 50.  A partir dessas fotos, Adele aponta para mudanças políticas e urbanas bruscas ocorridas em duas décadas cruciais na história de São Paulo. Há durante toda sua fala uma grande ênfase no crescimento da cidade, no surto desenvolvimentista que levaria a mesma a se tornar a maior cidade do país no começo da década de 60.
Adele Nelson não menciona os problemas da recusa da participação de artistas vinculados ao Partido Comunista à Bienal, como Diego Rivera, David Alfaro Siqueiros ou mesmo Cândido Portinari. Também não abordou a declaração do seus organizadores, como de Wolfgang Pfeiffer, diretor do MAM de São Paulo: "Os organizadores da bienal elaboraram um programa com objetivos meramente artísticos. Não cogitaram, por um minuto sequer, qualquer aspecto político que  esta pudesse ter. Lamentam, por isso, o incidente que determinou a ausência dos pintores  citados assim como de outros grandes nomes. Lamentam, igualmente, a não participação de todos aqueles cujas forças criadoras, no momento, estão entregues mais a atividades estranhas à arte (...)"
Para a professora tudo se passou como uma grande estratégia  política, como nos moldes da Semana de Arte Moderna de 22. É claro que existiram interesses políticos, mas em seu discurso faltou uma melhor contextualizção histórica destes fatos. Em sua fala, ficou implícita a reflexão de que Mario Pedrosa deteve todo controle sobre o evento, o que causou uma impressão  confusa sobre certas participações, como a de Pablo Picasso, que em seu discurso aparece historicamente eclipsado em detrimento ao sucesso público da exposição.
De outro lado, foi interessante a minuciosa descrição expográfica da Bienal, a partir de sua lógica interna. Mas permaneceram tímidas, por exemplo, as comparações (já usuais) com a Bienal de Veneza e Documenta de Kassel. De toda forma, a fala de Adele esbarrou em diversas redundâncias, como a preocupação ideológica da Bienal do “país do futuro”, esquecendo muitas vezes da característica desta ser também a bienal ‘da cidade de São Paulo’; e das nuanças  e disputas políticas internas no país.

Dentre os palestrantes da manhã, a professora Angela Mengoni foi a que mais diretamente se remeteu à noção de arquivo. Sua apresentação foi uma profunda análise do Atlas de Gerhard Richter: uma coleção intensa de imagens que o artista iniciou, de forma aberta e até espontânea, a partir de 1962.
A palestra foi bem didática e linear. O Atlas de Gerhard Richter parecia se tornar compreensível em sua caoticidade (já que se trata de um trabalho em processo de cinqüenta anos). O que é mais inquietante nesse trabalho é que apesar de incessante, não parece procurar se justificar. Essa coleção imensa de imagens, de origens e orientações diversas – e muitas vezes contraditórias – renuncia ao argumento direto ou didático que a noção de arquivo pode evocar.
O Atlas de Richter fascina por sua gratuidade, porém de forma diversa de suas pinturas. Nas pinturas, há sempre um argumento e uma refêrencia a própria história da pintura. Algo ao qual podemos sempre nos agarrar, a fim de combater nossa ânsia por significados. Como colocado por Mengoni, o Atlas tem um caráter de excesso e silêncio que nos chama à contemplação de sua forma-arquivo em si mesmo.
É importante notar que o Atlas se inicia como uma aparente pesquisa de imagens para posteriores pinturas. Mas, desde seu começo fica clara também a intenção do autor de expô-las em grupos heterogêneos, em combinações que nos sugerem sua escolha por intenções ora formais, ora ligada aos seus conteúdos. O número de imagens por conjunto parece seguir  uma lógica, mas apenas sugerida por sua repetição. Sua interpretação é possível, mas não determinante. Os critérios para sua escolha parecem ser os mais diversos possíveis: fotos de família, militares, animais, bebês, etc, todos em certa medida misturados, relacionados por um universo subjetivo, uma narrativa difusa entre a vida do artista e as histórias nas quais este percorre.
O Atlas constitui-se cada vez mais complexo pelo distanciamento de uma lógica esperada. Atravessando anos e anos sem a determinação de sua função explicita. Mengoni, durante toda sua palestra, reafirma esse caráter efêmero e intensivo de arquivo disfuncional em detrimento à leituras essencialistas, como, por exemplo, a de Benjamin Buchloh em seu Atlas de Gerhard Richter: o arquivo anômico, no qual o autor vê o Atlas como uma espécie de testamento do transcurso imagético, um arquivo de mortes, um compêndio de visões atravessando a história epistemologica da imagem através das vanguardas. Mengoni deixa que o Atlas apenas seja, de forma a reificá-lo finalmente enquanto um arquivo para o futuro, subvertendo sua função primeva de coleção fechada de imagens-fato do passado, e assim um grande labirinto de ferramentas devires... para uma compreensão aberta de caminhos quaisquer de futuros.

Texto para o Canal Contemporâneo. 2014.

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