game over ou a extinção do brazil.







“O horror, o horror...” As palavras do comandante Kurtz sempre retornam em situações políticas tão desastrosas como a que passamos hoje. Porém esse horror em Conrad e Coppola remete mais às forças obscuras da natureza, é aquele que perpassa aquilo que comumente associamos aos nossos medos ordinários. Esse “o horror...” que de tão repetido e parodiado, fez com que até mesmo duvidassem se foi alguma vez proferido por Marlon Brando ou até mesmo se foi escrito por Joseph Conrad.
Svetlana Aleksiévitch em seu “Vozes de Tchernóbil”. Faz uma costura de dezenas de relatos sobre o acidente nuclear na Ucrânia. A catástrofe em Tchérnobil traz ainda algo mais assustador que a própria escala maligna do acidente: a irresponsabilidade humana. Svetlana que escreve algo entre o jornalístico e o ficcional e vai nos tecendo a ambigüidade do perigo tecnológico entre seu controle e seu descontrole possível. No caso alí, tínhamos o horror invisível somado a uma sociedade burocrática que também se movia sorrateira. Um desastre como esse ou como o ocorrido em Fukushima perdem um certo caráter assustador e torna os dramas mais íntimos e de alguma forma limpos, pois o perigo não é visível, e além disso, é uma ameaça silenciosa. Fica à espreita incrustado nas superfícies por tempo não determinado.
Daniel Caballero trata de algumas dessas catástrofes. Mas ele escolhe a violência na representação dessas ocorrências. Seu conjunto de trabalhos é quase um monumento coeso mesmo que a princípio caótico. Não tecnicizando com explicações científicas, estatísticas ou maquiando com os filtros historiográficos. Não agindo como boa parte de artistas contemporâneos e suas estratégias de exposição descritiva, de pesquisa exibidas em displays, arquivos e documentários. Caballero parte para uma exibição pesada e “sem frescuras”: ele mesmo sugere que apesar da técnica não vê os trabalhos expostos exatamente como pinturas, mas como algo mais urgente, mais direto, mais pungente. Mesmo flertando com o que há de derrisório, mas de modo igual há muito de risível ou ridículo na sinceridade.
Qual afinal é a potência de uma tomada de posição “poética” de um artista diante uma catástrofe natural e política? Mesmo que essa posição harmonize-se a um senso comum. Afinal a comoção nos casos das grandes tragédias é unânime e, dentro de possíveis intervenções ou mesmo exercícios de explicitação ou rememoração de uma ocorrência trágica salvando-a do esquecimento, pode ser até mesmo embaraçoso evidenciar a evidência da tragédia tomando-a de forma ainda mais trágica. Extremar o sabido, jogar na cara... 
Porém os jogos de reapresentação que artistas costumam articular quando partem em direção ao “real sociológico” fazem com que dentro de seus limites expressivos se tornem muitas vezes redundantes. Além disso, o distanciamento de uma legitimação discursiva: o artista que trata de ciência, o artista que trata de política, que trata da antropologia, etc. Muitas vezes caindo no literal por insegurança ou desejo de inteligibilidade. 
Há formulas que se tornaram comuns para exposição de trabalhos artísticos que se pretendem como alertas, conscientizadores ou denunciadores de problemas e desastres sociais. Dizer que há formulas não implica numa crítica negativa ou desdenhosa desde temos o abandono salutar da mítica originalidade “arte pela arte” a fórceps e também ao que diz respeito à delimitação do tema e o desempenho em sua transmissão e compreensão. 
O empenho então deixa de ser na forma de exibição da posição (ou simples apresentação) do artista quanto ao problema exposto e torna-se sim a especificidade da pesquisa ou denúncia em si proporcional ao quanto esse objeto é obscuro, interdito ou excêntrico. 
Caballero vai mais longe e faz da representação das tragédias algo com uma força e pungência que coadunem com o objeto. De mais a mais também satura, macula, polui. Usa da forma bruta pra representação não dissimulada ou pretensamente intelectual quando toma a si a responsabilidade de ser tão duro quanto os assuntos que trata.  
Mas pensando, por exemplo, na tragédia de Mariana, ou no desaparecimento de Sete Quedas... como abordá-los sem cairmos num circunlóquio tecnicista que contraditoriamente justificaria o injustificável e que apenas os afirmaria como passado, como se esse passado fosse enterrado dentro da história e que não pudesse emergir sempre pior, sempre pedindo sua atualização mesmo que para isso fosse necessário que voltasse rudemente distorcido. 
 A tragédia de Mariana, por exemplo, ecológica e coincidentemente política jogou com diversos sentidos de comoção pública: do pesar pela catástrofe natural e suas implacáveis consequências às discussões quanto a responsabilidade e viria com a decorrente punição da empresa privada envolvida e a displicência do governo daquele Estado quanto a monitoria e devidas inspeções de segurança das estruturas dessas barragens.
Nem é necessário lembrar que não houve nenhuma punição substancial aos responsáveis até o momento em que escrevo. Pois como de hábito, foi paulatinamente arrefecido aquilo que era revolta coletiva, e “acreditem se quiserem” o desaparecimento da lamúria midiática de então (esta mesmo que dissimulada, afirmando mais uma treta dos deuses em detrimento a relevância das infrações políticas implicadas). Bom... nada de novo sobre a enxurrada do mal...
Quando se fala em história há mesmo um jogo bizarro, como esta tragédia que mesmo recente vai desaparecendo, pois fazemos mesmo uma espécie de defesa e apaziguamento de consciência, que se consuma, que se gaste no inexorável do sem solução, assim sem problema. 
Talvez fosse mesmo necessário fazê-las emergir de seus “passados”, desarquivá-las, colocá-las assim como representações delinqüentes, em um máximo de atualização, mesmo que perverta seu caráter de registro ou documento. Veja que o desaparecimento de Setes Quedas ou o incêndio no Museu Nacional do Rio de Janeiro têm mesmo que em seu distanciamento no tempo um mesmo destino de crimes exemplares cometidos por uma burocracia displicente. Um crime de outra temporalidade, um crime que parece sem crime. 
Fazer com que se desburocratizassem... que se mesclassem seus potenciais de desastres reais com os imaginários. 
A filósofa Anne Le Brun no ensaio “O Sentimento da Catástrofe” escreve sobre a mudança de apreensão das tragédias “naturais” pela cultura. Do sublime romântico e a natureza como fonte de medo e fascínio até a atual paranóia tecnizante e protocolares racionalizadores. Sugerindo assim uma debilitação do imaginário e consequentemente uma espécie de enfraquecimento “poético”.
Naturalizar, ou ainda, neutralizar nossa responsabilidade diante esses acontecimentos... manipulando sua tecitura: vezes os tornado algo do inexpugnável da contingência, da “incontrolável natureza”, vezes  criando meandros sedutores onde tão tecnicamente complexos e inextricáveis que jamais chegaríamos a um culpado, uma causa ou razão. Lembrando que até o Dilúvio teve uma causa política (um castigo contra o estado pecaminoso da humanidade).
A exposição “Game Over ou A extinção do Brazil” é uma experiência raivosa e arriscada onde esse risco está longe de ser unicamente intelectual, onde mesmo que se referindo a um escopo relativamente temático, os sentidos estão menos atrelados às idéias do que a presença, o peso, a brutalidade dos trabalhos exibidos.


Texto para a exposição de Daniel Caballero "Game Over ou a Extinção do Brazil"  na Galeria Virgílo 2018.

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