não houve mariana na tragédia.




O rompimento de duas barragens da mineradora Samarco inundou e destruiu localidades da cidade histórica de Mariana, em Minas Gerais, e também em demais locais na Região Serrana do Rio de Janeiro, além de contaminar os rios da região. A tragédia ecológica e coincidentemente política jogou com diversos sentidos de comoção pública: do pesar pela catástrofe natural e suas implacáveis consequências às discussões quanto a responsabilidade e consequente punição da empresa privada envolvida e a displicência do governo daquele Estado quanto a monitoria e devidas inspeções de segurança das estruturas dessas barragens.
Nem é necessário lembrar que não houve nenhuma punição substancial aos responsáves até o momento em que escrevo. Pois como de hábito, foi paulatinamente arrefecido aquilo que era revolta coletiva, e “acreditem se quiserem” o desaparecimento da lamúria midiática de então (esta mesmo que dissimulada, afirmando mais um treta dos deuses em detrimento a relevância das infrações políticas implicadas). Bom.. nada de novo sobre a enxurrada do mal...
A velha pergunta insiste: Qual afinal é a potência de uma tomada de posição “poética” de um artista diante uma catástrofe natural e política? Mesmo que essa posição harmonize-se a um senso comum. Afinal a comoção foi unânime e, dentro de possíveis intervenções ou mesmo exercícios de explicitação ou rememoração de uma ocorrência trágica salvando-a do esquecimento, pode ser até mesmo embaraçoso evidenciar a evidência da tragédia tomando-a de forma ainda mais trágica.
Há formulas que se tornaram comuns para exposição de trabalhos artísticos que se pretendem como alertas, conscientizadores ou denunciadores de problemas sociais. Dizer que há formulas não implica numa crítica negativa ou desdenhosa desde que temos o abandono salutar da mítica originalidade à fórceps e também ao que diz respeito à delimitação do tema e o desempenho em sua transmissão e compreensão. O empenho então deixa de ser na forma de exibição da posição (ou simples apresentação) do artista quanto ao problema exposto e torna-se sim a especificidade da pesquisa ou denúncia em si proporcional ao quanto esse objeto é obscuro, interdito ou excêntrico.
Alguns exemplos que pretenderam complexificar este tipo de trabalho fugindo do mero documental: Jeremy Deller em “The Battle of Orgrave” reencena com moradores nas ruas de Yorkshire os conflitos entre a polícia e mineiros em greve ocorrido na cidade em 1984; Ícaro Lira “Campo Geral” investigando rotas migratórias de retirantes fugindo da seca pelo Ceará, utiliza registros de sua própria passagem, documentos oficiais ou informais, memorabilias e objetos encontrados durante sua pesquisa, o peso do trabalho de Ícaro é o excessivo vernacular, a ambiguidade, o jogo entre a falta de objetividade e a demasia de informações; Clara Ianni e Débora Maria da Silva com “Apelo” vídeo elegia para os desaparecidos políticos no Cemitério Dom Bosco em Perus que recebe corpos “desconhecidos” desde 1971 quando começou a ser utilizado para desova durante a ditadura militar; e Thomas Hirschhorn “Touching Reality” em que o artista sem mais explicações utiliza um tablet onde vai aproximando, aumentando, diminuindo, escolhendo cortes em imagens de corpos assassinados que em sua grande maioria aparentam ser de vítimas de chacinas, guerras e invasões.
De certa forma o tema de Gian Spina seria a catástrofe de Mariana. Em primeiro lugar gostaria de apontar que me parece interessante justamente o retardo entre a época em que o desastre estava no âmago das discussões públicas e sua apresentação recente no Centro Cultural São Paulo. Quando digo “de certa forma” é que a instalação acaba adquirindo autonomia de sua proposição crítica inicial.
Anne Le Brun no ensaio “O Sentimento da Catástrofe” escreve sobre a mudança de apreensão  das tragédias “naturais” pela cultura. Do sublime romantico e a natureza como fonte de medo e fascinio até a atual paranóia tecnizante e protocolares racionalizadores. Sugerindo assim uma debilitação do imaginário e consequentemente a uma espécie de enfraquecimento “poético”. Irônico que em uma das imagens que Gian Spina utiliza me lembrou aquela postura Caspar David Friedrich (Sim, aquela mesmo.. Diante ao abismo e o infinito e tal). Gian é fotografado a beira de um rio lamacento em Mariana olhando para uma paisagem distante com um céu tomado por pássaros negros (urubus).
Além disso há a projeção sonora da leitura de um texto do próprio artista. Um relato guimarãesroseano de perda, descrição das condições do lugar e o testemunho da desgraça vivida por pessoas e animais. A obliquidade do texto torna ainda mais genérico o objeto do qual o artista partiu, apesar de uma garrafinha de aguá mineral cheia de lama pendurada no espaço expositivo poder dar uma melhor pista à compreensão da instalação e seu contexto. O caso aqui sequer seria discutir a insuficiência do trabalho de Gian relativa à contextualização da situação sugerida. Talvez o contrário. Talvez o que finalmente torne a experiência mais fértil e universalizante seja sua tortuosidade e indeterminação, mesmo que a torne algumas vezes mais paródica do que catártica ou politicamente crítica.  

Texto para o catálogo do Programa de Exposições CCSP. 2016.

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