sortilégios das contradições (felizes)




                                                                                                    Foto: Douglas Garcia


Alguns apontamentos de contradições em arte contemporânea e democracia representativa que parecem tão evidentes, não as sendo.
Uma das contradições é quanto ainda flutua uma certa crença que na política e na arte temos etapas ou coerência em um grande projeto de convencimento quanto a acordos tácitos onde nos deixaríamos seduzir.
De forma que fosse possível assim que nos encontrássemos contrariados barrar sua trajetória e desenvolvimento.  Hoje berra que vivemos uma confusão “causada” mas que contraditoriamente se apresenta sem definição, trajeto, sem planejamento e assim irreparável.
O que chamamos arte contemporânea (essa coisa com bula rasgada, esse tempo sem tempo, eterno contemporâneo, um tempo que não age no tempo) não existe tendo como imprescindível essa contradição, porém nela vive confortável.
É conflituosa a consciência que achamos ter dos desvios, transitoriedades e estratégias furtivas propositais ou não do “poder” (desvios, transitoriedades e estratégias furtivas que deveriam ser associados a uma cultura contestatória alimentada por vários clérigos libertários); e a consciência de nossa inoperância diante destas e ao mesmo tempo uma espera ciente e resoluta (das delícias da irresponsabilidade) muitas vezes constrangedora.
Outra contradição que resiste é ainda uma outra fé meio milenarista de um possível tudo destruído e recomeçado.
Que em algum momento a máquina malvada vai fundir e a “coisa” voltará a não nos aterrorizar a cada passinho do romano.
Mas essa mesma fé sempre regeu nossa viciosa correlação política e religião e nos deixou sequelas imbecis, também aparentemente irremediáveis, onde temos desejo e medo que algo realmente mude, especialmente que mude completamente: melhor suportar uma desgraça que não nos surpreende mais, do que um apocalipse...
O casamento, por exemplo, de um radicalismo (os tesudos revolucionarismos, intransigências e tals), nostalgia modernista que persiste mantendo vivas pequenas utopias arte/vida, arte/política, arte/desemprego, “empoderamentos” e iconoclastias; e o pragmatismo como o encontrado na teoria institucional da arte, inteligente e lisa o bastante pra não corrermos riscos de uma autodefesa menos especializada e que seria necessariamente mais pertinente às demandas e questionamentos metafísicos ou mesmo os ordinários. A Arte contemporânea parece subsistir das inconveniências dessa incongruência.
A democracia representativa ou as democracias atuais, “a pior forma de governo, exceto todas... tralalá...”, também se alimenta paradoxalmente dessas crenças e suas respectivas falências. Teleológica em eterna frustração de suas próprias prerrogativas e viciada em sua incompletude programática... mas ao mesmo tempo mantendo uma expectativa de mudança...
Rancière resume: “a realidade do poder do povo vê-se cada vez mais reduzida aos períodos eleitorais, isto é, à escolha, todos quatro ou cinco anos, entre duas versões coloridas de um mesmo programa fundamental”. Programa já a bastante tempo seria o das pautas oligárquicas e corporativas. Fica cada vez mais perceptível também não apenas a escolha entre, mas o revezamento dessas versões de forma a manter sempre uma esperança de “mudança” e não matar maninho de tédio.
A arte também vive de variações sazonais de temas de interesse para se alimentar das pequenas grandes polêmicas suscitadas por estes. Também para não matar essa gente vestida de preto, superligada e palida de fastio.
Mesmo vivendo sobre uma mesma base perversa e fugidia conseguimos nos ludibriar com possibilidades sazonais de mudança mesmo que praticamente natimortas e um auto-engano onde acreditamos saber como suas estruturas funcionam.
Quando era “noviço” no convento da esquizofrenia elegante vislumbrava algo como uma carreira. Achava que tinha conhecimento e controle sobre as formas de funcionamento do “sistema” e uma esperança mínima em minha relevância como agente transformador ou singular. Acho que essa é uma presunção típica de grande parte dos estudantes de arte, mas que hoje aparece cada vez mais dissimulada. Como se houvesse uma certa vergonha de termos nos apaixonado por um campo tão viciado e tão ambíguo.
Um quase academicismo mesclado a sua própria negação em nome de uma crítica perene ao evidente caráter de reféns das pautas de “cultura” obrigatórias em nosso teatro democrático; e um exercício de desencargo de consciência pelos temas acabarem sendo mesmo assim... tão sedutores. Mas que caem em formas de sedução semelhantes às encontradas em nossa “insuspeita” democracia contemporânea.
Ensejos policiados onde temos justificações seguras para um desentendimento controlado que flerta com “diferentes” promessas dentro da democracia representativa.
Essa relação de insatisfação e dependência. Na busca de uma auto-imagem que seja lisonjeira, mas que se perturbe. Que possa ser dita um campo de conhecimento e suas competências, mas que ao mesmo tempo se negue enquanto poder institucionalizado.
Rancière novamente (desculpa gente, citações são atalhos): “O exercício intitucional de poder entre os homens funda-se na pressuposição de uma diferença de competência: há os que precisam de ser governados e os que tem a capacidade de o fazer...”
Há aqueles que precisam de arte (ledo engano) e os que tem a capacidade de produzí-la.
Desta relação entre competências parto, numa apropriação completamente equivocada mas que acho funcional, para a idéia de contrapúblico. Que seria esse público de certa maneira inconveniente (mas necessário dentro da lógica “democrática” das roletas) que joga na cara de artistas e instituições artísticas sua autonomia interpretativa e comportamental (no melhor dos casos) ou pura indiferença (no melhor dos casos também... neste caso) e me leva a pensar uma outra circunscrição de campos infeliz.
Infeliz, pois penso que há um desejo perverso de muitos artistas que se veriam como detentores de uma competência complexa praticamente elitista e o desejo de negá-la ou desconstruí-la.  Que almejariam ser seu próprio contrapúblico. Que poderiam colocar a prova também sua maestria numa espécie de ciência das autocontradições: arte não se ensina, não precisa ser compreendida, arte que não se vende, arte não institucional, que é política por natureza, que é política sem sê-la, arte não é arte, que é “democrática”... 
Artista que se nega ser representante de um grupo definido, ser representante de uma idéia, artista representante da arte, ou mesmo ser representante de qualquer coisa... como se a idéia de contrapúblico flertá-se com a idéia de democracia direta em detrimento a representativa.
Outro ponto nascido dessas contradições hoje me parece a rasitude e a paixão pelo literal. Esse desejo de autonomia institucional e interpretativa leva à uma torrente de apropriações discursivas rasas e literais, o que em hipótese alguma seria um problema desde que existe também uma negação de um essencialismo possível. Uma suspeita das profundidades, um desejo de ser direto que coadune com o de acessibilidade.
Vi há pouco tempo em post no Facebook, alguém certamente mais “ressentido” que eu que conseguiu apontar uma propedêutica da poesia falcatrua, mais ou menos assim: você pega um texto qualquer linear (prestes à ser um texto  jornalístico, ou quase acadêmico, mesmo que óbvio e redundante, fragmentá-o et voilà... tua poesia contemporânea! É isso mesmo! Mas penso ser praticamente impossível não amar, não se deixar seduzir por essa artimanha...
O que seria um problema é a disjunção entre: a clara performatividade dessa estratégia, a forma como discursos estanques se atualizam, se ordinarizam e assim forjam uma proximidade e abertura; contraposta à estrutura hermética e elitista dos espaços onde se apresentam.
Similar à pirraça de uma certa esquerda que pretende transformar ou superar “democraticamente” nossa política viciosa jogando o mesmíssimo jogo de seus opositores ou opressores. Como um artista se colocando como uma espécie de contrapúblico como não sustentasse ou não participasse plenamente da estrutura que renega.
Coisa de gente doente (brincadeira). Sei que é exagero, mas me soou bem. Não acho necessário acreditarmos piamente naquilo que pensamos.
Em nossa época do “conteúdo gerado pelo usuário”, suportamos com prazer a sofrência do outro lado da democratização da informação. Pois na arte contemporânea temos também uma replicação de estratégias de informação da mídia (de todos os portes para todas as idades mentais) como bem colocado por uma citação encontrada no vídeo A role play de Roberto Winter: “Eles querem que você ache que você é capaz de compreender, e eles fazem isso explicando tudo de um jeito tão idiota que você certamente nunca entenderá nada”. Talvez a diferença entre as formas idiotas seja que uma subestima e outra superestima interpretações possíveis.
Escrevi isso como um rápido desabafo. Falta-me inteligência ou malandragem necessária para algo mais profundo que isso no momento.
Além de ser difícil o distanciamento possível para juízos acurados. Desde que enfiado nisso também.
Os entraves em nossa relação cada vez mais complexa e insatisfatória com essa disforme e traiçoeira democracia que vivemos e que parecem insuperáveis, mas apesar disso: “A pior forma de governo, exceto todas.. tralalá...” são similares aos de nossa condição de artistas, etc. “sabedores” tateantes, ativistas sonâmbulos e estranhamente teimosos pois vivemos insistindo em sermos facilmente seduzidos e enfeitiçados por tudo o que nisso criticamos.
As contradições espetacularizáveis da arte e da política mantém magicamente seus sentidos mesmo não os tendo, e especialmente sendo campos tão contaminados pelo que há de pior nas relações de “saber” e “poder”.  
Acho bem redutor argumentarmos que essas contradições sejam estimulantes, como alguma alma bem aventurada poderia supor. Remetem mais a prisões que de tão inescapáveis deixam de ser infernos e se tornam normatizadas. Mas é sempre bom terminarmos com alguma nota mais feliz.
Sortilégios das contradições (felizes).

Texto para publicação "Intermediário" pela editora Membrana 2018.






































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