Alguns apontamentos de contradições em arte contemporânea e democracia representativa que parecem tão evidentes, não as sendo.
Uma das contradições é quanto ainda flutua
uma certa crença que na política e na arte temos etapas ou coerência em um
grande projeto de convencimento quanto a acordos tácitos onde nos deixaríamos
seduzir.
De forma que fosse possível assim que nos
encontrássemos contrariados barrar sua trajetória e desenvolvimento. Hoje berra que vivemos uma confusão “causada”
mas que contraditoriamente se apresenta sem definição, trajeto, sem
planejamento e assim irreparável.
O que chamamos arte contemporânea (essa
coisa com bula rasgada, esse tempo sem tempo, eterno contemporâneo, um tempo
que não age no tempo) não existe tendo como imprescindível essa contradição,
porém nela vive confortável.
É conflituosa a consciência que achamos ter
dos desvios, transitoriedades e estratégias furtivas propositais ou não do
“poder” (desvios, transitoriedades e estratégias furtivas que deveriam ser
associados a uma cultura contestatória alimentada por vários clérigos libertários);
e a consciência de nossa inoperância diante destas e ao mesmo tempo uma espera
ciente e resoluta (das delícias da irresponsabilidade) muitas vezes
constrangedora.
Outra contradição que resiste é ainda
uma outra fé meio milenarista de um possível tudo destruído e recomeçado.
Que em algum momento a máquina malvada vai
fundir e a “coisa” voltará a não nos aterrorizar a cada passinho do romano.
Mas essa mesma fé sempre regeu nossa viciosa
correlação política e religião e nos deixou sequelas imbecis, também
aparentemente irremediáveis, onde temos desejo e medo que algo realmente mude,
especialmente que mude completamente: melhor suportar uma desgraça que não nos
surpreende mais, do que um apocalipse...
O casamento, por exemplo, de um radicalismo
(os tesudos revolucionarismos, intransigências e tals), nostalgia modernista
que persiste mantendo vivas pequenas utopias arte/vida, arte/política, arte/desemprego,
“empoderamentos” e iconoclastias; e o pragmatismo como o encontrado na teoria
institucional da arte, inteligente e lisa o bastante pra não corrermos riscos
de uma autodefesa menos especializada e que seria necessariamente mais
pertinente às demandas e questionamentos metafísicos ou mesmo os ordinários. A
Arte contemporânea parece subsistir das inconveniências dessa incongruência.
A democracia representativa ou as
democracias atuais, “a pior forma de governo, exceto todas... tralalá...”,
também se alimenta paradoxalmente dessas crenças e suas respectivas falências.
Teleológica em eterna frustração de suas próprias prerrogativas e viciada em
sua incompletude programática... mas ao mesmo tempo mantendo uma expectativa de
mudança...
Rancière resume: “a realidade do poder do
povo vê-se cada vez mais reduzida aos períodos eleitorais, isto é, à escolha,
todos quatro ou cinco anos, entre duas versões coloridas de um mesmo programa
fundamental”. Programa já a bastante tempo seria o das pautas oligárquicas e
corporativas. Fica cada vez mais perceptível também não apenas a escolha entre,
mas o revezamento dessas versões de forma a manter sempre uma esperança de
“mudança” e não matar maninho de tédio.
A arte também vive de variações sazonais de
temas de interesse para se alimentar das pequenas grandes polêmicas suscitadas
por estes. Também para não matar essa gente vestida de preto, superligada e
palida de fastio.
Mesmo vivendo sobre uma mesma base perversa
e fugidia conseguimos nos ludibriar com possibilidades sazonais de mudança mesmo
que praticamente natimortas e um auto-engano onde acreditamos saber como suas
estruturas funcionam.
Quando era “noviço” no convento da
esquizofrenia elegante vislumbrava algo como uma carreira. Achava que tinha
conhecimento e controle sobre as formas de funcionamento do “sistema” e uma
esperança mínima em minha relevância como agente transformador ou singular.
Acho que essa é uma presunção típica de grande parte dos estudantes de arte,
mas que hoje aparece cada vez mais dissimulada. Como se houvesse uma certa
vergonha de termos nos apaixonado por um campo tão viciado e tão ambíguo.
Um quase academicismo mesclado a sua própria
negação em nome de uma crítica perene ao evidente caráter de reféns das pautas
de “cultura” obrigatórias em nosso teatro democrático; e um exercício de
desencargo de consciência pelos temas acabarem sendo mesmo assim... tão
sedutores. Mas que caem em formas de sedução semelhantes às encontradas em
nossa “insuspeita” democracia contemporânea.
Ensejos policiados onde temos justificações
seguras para um desentendimento controlado que flerta com “diferentes”
promessas dentro da democracia representativa.
Essa relação de insatisfação e dependência.
Na busca de uma auto-imagem que seja lisonjeira, mas que se perturbe. Que possa
ser dita um campo de conhecimento e suas competências, mas que ao mesmo tempo se
negue enquanto poder institucionalizado.
Rancière novamente (desculpa gente, citações
são atalhos): “O exercício intitucional de poder entre os homens funda-se na
pressuposição de uma diferença de competência: há os que precisam de ser
governados e os que tem a capacidade de o fazer...”
Há aqueles que precisam de arte (ledo
engano) e os que tem a capacidade de produzí-la.
Desta relação entre competências parto, numa
apropriação completamente equivocada mas que acho funcional, para a idéia de
contrapúblico. Que seria esse público de certa maneira inconveniente (mas
necessário dentro da lógica “democrática” das roletas) que joga na cara de
artistas e instituições artísticas sua autonomia interpretativa e
comportamental (no melhor dos casos) ou pura indiferença (no melhor dos casos
também... neste caso) e me leva a pensar uma outra circunscrição de campos infeliz.
Infeliz, pois penso que há um desejo
perverso de muitos artistas que se veriam como detentores de uma competência
complexa praticamente elitista e o desejo de negá-la ou desconstruí-la. Que almejariam ser seu próprio contrapúblico.
Que poderiam colocar a prova também sua maestria numa espécie de ciência das
autocontradições: arte não se ensina, não precisa ser compreendida, arte que
não se vende, arte não institucional, que é política por natureza, que é
política sem sê-la, arte não é arte, que é “democrática”...
Artista que se nega ser representante de um
grupo definido, ser representante de uma idéia, artista representante da arte, ou
mesmo ser representante de qualquer coisa... como se a idéia de contrapúblico
flertá-se com a idéia de democracia direta em detrimento a representativa.
Outro ponto nascido dessas contradições hoje
me parece a rasitude e a paixão pelo literal. Esse desejo de autonomia
institucional e interpretativa leva à uma torrente de apropriações discursivas rasas
e literais, o que em hipótese alguma seria um problema desde que existe também
uma negação de um essencialismo possível. Uma suspeita das profundidades, um
desejo de ser direto que coadune com o de acessibilidade.
Vi há pouco tempo em post no Facebook,
alguém certamente mais “ressentido” que eu que conseguiu apontar uma propedêutica
da poesia falcatrua, mais ou menos assim: você pega um texto qualquer linear
(prestes à ser um texto jornalístico, ou
quase acadêmico, mesmo que óbvio e redundante, fragmentá-o et voilà... tua
poesia contemporânea! É isso mesmo! Mas penso ser praticamente impossível não
amar, não se deixar seduzir por essa artimanha...
O que seria um problema é a disjunção entre:
a clara performatividade dessa estratégia, a forma como discursos estanques se
atualizam, se ordinarizam e assim forjam uma proximidade e abertura;
contraposta à estrutura hermética e elitista dos espaços onde se apresentam.
Similar à pirraça de uma certa esquerda que
pretende transformar ou superar “democraticamente” nossa política viciosa
jogando o mesmíssimo jogo de seus opositores ou opressores. Como um artista se
colocando como uma espécie de contrapúblico como não sustentasse ou não
participasse plenamente da estrutura que renega.
Coisa de gente doente (brincadeira). Sei que
é exagero, mas me soou bem. Não acho necessário acreditarmos piamente naquilo
que pensamos.
Em nossa época do “conteúdo gerado pelo
usuário”, suportamos com prazer a sofrência do outro lado da democratização da
informação. Pois na arte contemporânea temos também uma replicação de
estratégias de informação da mídia (de todos os portes para todas as idades
mentais) como bem colocado por uma citação encontrada no vídeo A role play de
Roberto Winter: “Eles querem que
você ache que você é capaz de compreender, e eles fazem isso explicando tudo de
um jeito tão idiota que você certamente nunca entenderá nada”. Talvez a
diferença entre as formas idiotas seja que uma subestima e outra superestima
interpretações possíveis.
Escrevi isso
como um rápido desabafo. Falta-me inteligência ou malandragem necessária para
algo mais profundo que isso no momento.
Além de ser difícil
o distanciamento possível para juízos acurados. Desde que enfiado nisso também.
Os entraves em
nossa relação cada vez mais complexa e insatisfatória com essa disforme e
traiçoeira democracia que vivemos e que parecem insuperáveis, mas apesar disso:
“A pior forma de governo, exceto todas.. tralalá...” são similares aos de nossa
condição de artistas, etc. “sabedores” tateantes, ativistas sonâmbulos e
estranhamente teimosos pois vivemos insistindo em sermos facilmente seduzidos e
enfeitiçados por tudo o que nisso criticamos.
As contradições
espetacularizáveis da arte e da política mantém magicamente seus sentidos mesmo
não os tendo, e especialmente sendo campos tão contaminados pelo que há de pior
nas relações de “saber” e “poder”.
Acho bem redutor
argumentarmos que essas contradições sejam estimulantes, como alguma alma bem
aventurada poderia supor. Remetem mais a prisões que de tão inescapáveis deixam
de ser infernos e se tornam normatizadas. Mas é sempre bom terminarmos com
alguma nota mais feliz.
Sortilégios das contradições (felizes).
Texto para publicação "Intermediário" pela editora Membrana 2018.
Texto para publicação "Intermediário" pela editora Membrana 2018.
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